segunda-feira, 15 de agosto de 2011

Gracie não se arrepende de vender UFC, mas alerta: 'não é mais briga de verdade'

Maurício Deho
Quando o UFC começou, seu criador, Rorion Gracie, tinha só uma intenção: colocar lutadores de diversas especialidades dentro da jaula, sem regras, como forma de comprovar a superioridade do jiu-jitsu aperfeiçoado por sua família. Quase duas décadas depois, o Ultimate Fighting Championship se transformou, virando uma febre mundial e valendo US$ 2 bilhões. Mesmo tendo vendido sua parte quando a empresa era cotada em só US$ 2 milhões, Rorion diz não se arrepender e apenas lamenta não poder ver no ringue o formato que planejou: “não é mais briga de verdade”.
Para Rorion, a criação de regras, a implementação de rounds e a limitação de tempo mudaram o “jogo”, mexendo não só com os resultados, mas com a cabeça dos atletas. Ainda assim, conclui que o importante neste processo todo foi a concretização de sua meta ao se mudar para os Estados Unidos, que foi mostrar ao mundo o jiu-jitsu dos Gracie. Hoje, segundo o carioca de 59 anos, ele é a base de um novo estilo de luta, que é o que se tornou o MMA, as artes marciais mistas.
Em entrevista ao UOL Esporte, além de falar da fase atual da modalidade e do evento, Rorion lembrou a criação do UFC e, antes disso, as dificuldades que passou nos Estados Unidos. Na sua primeira visita ao país, o filho de Hélio Gracie foi roubado e chegou a pedir esmola e dormir na rua. Confira essa e outras histórias do criador do evento, que retorna ao Brasil no dia 27 de agosto.

Qual foi a ideia principal em criar o UFC como um torneio entre lutadores de diferentes modalidades e sem regras?

Rorion Gracie: Eu tive essa ideia de fazer campeonatos com oito lutadores, de diferentes especialidades, para que todos vissem uma comparação de estilos de luta. A ideia era educacional, para mostrar de uma vez por todas qual luta era a melhor luta e provar meu ponto com o jiu-jitsu. As pessoas começaram a entender que com técnica não se precisa de força ou habilidade física. O Royce [Gracie, vencedor de três dos quatro primeiros UFCs], apesar de menor e mais leve, ganhou de todo mundo, provando que o fraco vence se conhecer a técnica certa.Ter um lutador como Royce foi importante nesta primeira fase?Rorion: O Royce nunca tinha feito uma briga de rua na vida. Eu o escolhi porque ele não tinha um físico impressionante, muito pelo contrário, era quase de dar pena! Achei que seria o melhor exemplo para mostrar a eficiência do jiu-jitsu. Aliás, nós na família Gracie não somos grandes atletas. Um exemplo: o Michael Jordan é um atleta excelente, porque faz coisas no basquete que outros não fazem. Isso depende da habilidade dele. Já o Royce tinha um conhecimento que ninguém mais possuía. Como ninguém sabia nada de luta no chão, ele venceu todo mundo. Ou seja, o excepcional não era o Royce e sim o jiu-jitsu.

Em comparação com os primeiros UFCs, hoje o MMA é um estilo de luta propriamente dito?

Rorion: Esta é a pergunta. Minha ideia original era comparar estilos para que se descobrisse qual o mais eficiente. Sem sombra de dúvidas o jiu-jitsu ganhou. Consequentemente, todos começaram a aprender, mesmo aqueles que não gostam de admitir isso. Hoje existe uma mistura mas, se tirarmos o jiu-jitsu, qualquer lutador perderá drasticamente sua eficiência. Ou seja, o MMA virou um tipo de luta, mas o jiu-jitsu é a espinha dorsal da eficiência dos praticantes.E como ocorreu a venda do UFC.

Você não estava contente com os rumos do evento?

Rorion: Vendi minha participação porque meus sócios insistiram em implementar tempo de luta, luvas, categorias de peso, etc. E com tudo isso torna-se necessário haver participação de jurados para decidir quem ganha. Os jurados definem a vitória por quem deu mais socos ou foi mais agressivo, e na verdade isso não comprova quem é o melhor lutador. O UFC não é mais uma briga de verdade, virou entretenimento. Como eu já tinha provado meu ponto, vendi minha participação e não me arrependo disso.

Hoje em dia você acompanha o evento? Pretende assistir ao UFC Rio?

Rorion: Não me interessa. Não assisto aos shows. Hoje não temos mais a comparação de estilos de luta, e sim uma comparação de atletas. Mede-se a capacidade física e atlética do individuo. Quanto ao evento no Rio, para mim é ótimo, pois eu vejo que a ideia que tive virou um sucesso internacional.

Entre os grandes de hoje, você tem algum lutador preferido?

Rorion: Não. Todos esses atletas que chegam à posição de um Anderson Silva têm suas qualidades. Ter a disposição de botar a cara para trocar porrada no ringue demonstra a atitude de um vencedor. O MMA é um esporte que exige uma variedade de qualidades, como dedicação, persistência, disciplina, técnica... Portanto todos eles - como Anderson, Minotauro, Wanderlei Silva - merecem o nosso respeito.

Voltando ao seu início como um difusor do jiu-jitsu, como foi a primeira vez que você foi aos Estados Unidos?

Rorion: Eu vim para cá em 1969, para tirar três meses de férias, mas meu dinheiro e a passagem de volta foram roubados. O problema é que a companhia de aviação disse que ia demorar seis meses para reaver a passagem. Então, liguei para o meu pai, Hélio Gracie, e disse “papai, tô gostando tanto da América que vou ficar seis meses”. Eu tinha 17 anos, estava sozinho e sem falar inglês direito, e ainda sem passagem para voltar. Mas não queria preocupar o velhinho (risos).

Como você se manteve neste tempo, longe de casa?

Rorion: Comecei a ir atrás de emprego e arranjei trabalho em uma lanchonete. Comecei a me arrumar, mas cheguei até a pedir esmola na rua, dormir em jornal... A ideia de trabalhar para me sustentar e de ter que assumir responsabilidade por tudo que fazia ajudou a fazer desta aventura uma experiência positiva. Depois que me formei em direito no Brasil, em 1978, mudei para os EUA já com a ideia para implantar o nosso jiu-jitsu.

Quais foram suas dificuldades no início?

Rorion: No começo, coloquei um tatame dentro da minha garagem e todas as pessoas que eu conhecia, convidava para uma aula grátis. Se a pessoa trouxesse um amigo, ganhava mais uma, se trouxesse dez amigos, ganharia dez aulas. E com isso a coisa foi crescendo.

Foi ali mesmo na garagem que começou o que viraria o UFC, não?

Rorion: Enquanto a academia estava crescendo, tinha alunos que chegavam e falavam que professores de outras artes não acreditavam na eficiência do jiu-jitsu e que estavam dispostos a brigar comigo. Então, eu convidava esses professores de caratê, boxe, kung fu para a minha garagem, e chamava os alunos que queriam ver o “pau comer". Como o jiu-jitsu é indiscutivelmente a mais completa das artes marciais eu ganhava de todo mundo.

Como isso se transformou em fama para você, até chegar no UFC?

Rorion: A popularidade passou a ser tão grande, que em um momento eu estava dando mais de 600 aulas por mês e tinha 85 pessoas na lista de espera para aprender, entre eles, o diretor do “Conan, o Bárbaro”, John Milius. Depois de uns dez anos de garagem, eu consegui abrir uma academia na Califórnia. E um dia a ficha caiu que, se eu quisesse mostrar o jiu-jitsu Gracie para o mundo inteiro, eu tinha de ir para a televisão.

Depois de quase duas décadas da criação do UFC, você faria algo diferente para ainda ter o evento?

Rorion: Não, faria exatamente igual. Pensei bastante na época de criar o Ultimate, para não me arrepender depois. O fato de ter sido até um pouco chocante, não ter limite de tempo, e os lutadores poderem usar qualquer golpe, é que fez o evento ter o sucesso e a credibilidade que teve. Isso foi uma tática que funcionou muito bem, e criou essa chama inicial para o vale-tudo pegar fogo.


UFC 1: O COMEÇO DE TUDO
O dia 12 de novembro de 1993 marcou a primeira edição do UFC. Em Denver (EUA), oito lutadores foram reunidos em um torneio, incluindo Royce Gracie, irmão do principal criador do evento, Rorion. Oferecendo US$ 50 mil ao vencedor, as lutas não tinham limite de tempo, rounds e restrição de golpes - apenas os considerados baixos, incluindo mordidas e dedadas no olho. Cerca de 2.800 pessoas acompanharam a programação - que também foi transmitida em pay-per-view na TV norte-americana - e incluía na mesma noite a disputa de quartas de final, semifinal e a definição do título.
Dentro da jaula, o destaque acabou sendo Royce e seu jiu-jitsu. Ele iniciou vencendo o norte-americano Art Jimmerson, depois finalizou Ken Shamrock em 57s. Na final, foi campeão ao vencer com um mata-leão o holandês Gerard Gordeau, em menos de dois minutos.

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